sábado, 11 de junho de 2011

Estranhos no ninho

Pé ante pé, d. Yeda sobe a rua de casa na direção do banco. Vai pegar a aposentadoria, coisa pouca, mas não vai só. À frente segue o neto, mão direita no bolso da bermuda, um guarda-costas de 4 anos. Ao lado caminha a filha, empurrando um carrinho com a outra neta de d. Yeda, de 11 meses, que saiu com o rostinho redondo e os olhos puxados da avó. Uma moça se aproxima e reverencia a idosa. "Tá tudo bem, d. Tereza?" Ela faz que sim. Um mecânico pega na sua mão arroxeada: "Deus é pai, d. Tereza, pena que o Louro..." D. Yeda não diz amém. Não diz nada. Só pisca lentamente. Na Mooca, d. Yeda Tanaka Alexandre é d. Tereza, d. Terê, d. Zinha. O Louro é um louro mesmo, um papagaio que ela criou por 30 anos na cozinha de casa e viu morrer de morte matada no domingo passado.

A violência doeu na vizinhança, mas d. Yeda afirma que não tem amizade com ninguém. Mal sai de casa por causa de um problema na coluna. Aos 79 anos também é cardíaca, tem uma cicatriz que avança decote acima por causa de uma safena. Sofre ainda de diabetes, tirou a vesícula, tirou o útero. Mas o problema mesmo é a coluna. É tamanho o desconforto que ela dorme na sala, numa cama encaixada sob a escada. Não tem articulação nem vontade de ir para os quartos de cima. Sua vida corre pausadamente no térreo. No domingo ela já tinha rezado a novena do Divino Pai Eterno, depois o bizantino do Padre Marcelo. A próxima estação seria o terço tradicional. D. Yeda pede primeiro pelos vivos, que são muitos: três filhos, genros, netos, sobrinhada. Depois se lembra do marido, da filha e do marido dessa filha, que se foram nos últimos anos.

Estava nessa conta lá pelas 19h30 quando bateram à porta. D. Yeda pensou ser Thiago, o marido da caçula, que vinha buscar a marmita dominical. Abriu uma fresta e deu de cara com um mulato grande, e depois com outros galalaus. Todos carudos, sem touca nem meia de seda. Seriam quatro no boletim de ocorrência - um de 22, outro de 21, um de 18 e outro de 17 -, mas na sua cabeça era um batalhão. Um deles a puxou pelos cabelos e arrastou sua pouca estatura sala adentro. Queria saber onde estava o dinheiro, onde estavam as joias. Faltou perguntar do cofre, que ela também não tem. Alguém arrancou com força sua pulseirinha de ouro, outro pedia a chave de um quarto de cima, que ela guarda num copinho na cozinha. Jonas, o de 22 anos, a mantinha na mira de um 38, às vezes lhe dava coronhadas no alto das costas, sempre abafando sua boca com a outra mão.

Nisso o Louro deu sinal de alerta. Sem sair do poleiro passou a berrar, porque é assim que reagia diante de estranhos. Abria as asas e gritava. Jonas ordenou que um dos bandidos torcesse o pescoço daquele papagaio fdp, mas o Louro avançou nele e o moço recuou. Jonas então jogou a ave no piso branco e pisoteou sua cabeça repetidas vezes. A plumagem se espalhou embaixo da mesa da cozinha.

O genro veio buscar a marmita e acabou também rendido e agredido pelos ladrões. Eles rasgaram a cortina do banheiro, amarraram d. Yeda com os retalhos e jogaram a refém de bruços naquela cama embaixo da escada. Thiago foi posto de joelhos diante do leito. Nos quartos de cima os bandidos passaram a amontoar o que lhes pareceu de valor agregado, quase tudo pertences da neta Nicole, que mora com a avó, mas estava com a mãe na casa dos fundos. Juntaram dois pares de tênis, três celulares, dois relógios de pulso, uma carteira, bijuterias da 25 de Março, um perfume da Avon, além da aliança de casamento de Thiago e da pulseira de d. Yeda.

Já estavam meio de saída quando a polícia anunciou presença. Alertada pelo papagaio e pela luz acesa no quarto que sempre ficava às escuras, Nicole acionou a PM, que fechou a rua com uns 30 agentes. Os bandidos largaram mão, não sem antes Jonas jogar o Rossi 38, de numeração picotada, embaixo de uma das camas. Nicole correu para d. Yeda: "Mataram o Louro", balbuciou a avó.

Batata! Batata! O psitacídeo chegou à residência dos Alexandres nos anos 80, trazido pelo marido de d. Yeda, que encontrou o bicho machucado numa estrada perto do sítio deles. Era o segundo papagaio da família. O primeiro, um ás da tagarelice, morreu sem palavras diante da bocada de um cachorro. Louro aprendeu a falar batata, que gostava frita, mas sequinha, e arremedava algo como Rafael, o nome de um sobrinho de d. Yeda. Também dançava vez ou outra e arremessava longe o pão francês se a dona não lambuzasse o pedaço com manteiga. Tinha como vizinho de frente um pássaro preto, o Pretinho. Ele veio substituir outro da mesma espécie, velho de guerra, falecido por um mergulho inadvertido na piscina da casa. No corredor lateral da casa Louro ouvia os latidos avulsos da dupla de pit bulls Zeus e Zara, que no dia do assalto, aliás, não deram um pio sequer.

Ana Maria Braga teria prometido um Louro, que não o José, para confortar d. Yeda, mas ela não se anima. Enquanto abaixa a capota do carrinho para proteger a filha do sol, a caçula de d. Yeda repete seu mantra: "Ninguém de direitos humanos veio ver se minha mãe está bem; não são direitos humanos, são direitos dos mano". Os ladrões, todos com passagem pela Fundação Casa, foram acusados de roubo tentado e de assassinato de espécime da fauna silvestre, artigo 29 dos crimes contra o meio ambiente, cuja pena pode chegar a um ano. A caçula insiste que os meliantes seriam da região, talvez da favelinha da Av. Álvaro Ramos, "noias" que ficam zoando na redondeza e obrigando os moquenses a espigar suas muretas e arrematá-las com lanças de ponta - quando não a vender o terreno para as grandes construtoras, que prometem esquemas invioláveis de segurança em apartamentos privativos de até 221 metros quadrados.

D. Yeda não consta nas estatísticas brasileiras de bandidagem contra o idoso porque, a priori, estatísticas nesse sentido não existem. Sabe-se que a maior parte das agressões contra essa população (cerca de 70%) vem de gente conhecida da vítima. Tanto que tramita na Câmara projeto de lei que duplica a pena para crimes praticados contra o idoso caso o agressor seja ascendente, descendente, irmão, cônjuge, ex-cônjuge, companheiro, ex-companheiro ou tenha a responsabilidade de cuidar da pessoa de idade. A detenção pode ir de um a seis anos, mais multa. Hoje o Estatuto do Idoso prevê como pena geral para casos desse tipo detenção de seis meses a três anos, mais a tal multa.

Mas pesquisa feita em Belo Horizonte em 2002 incluiu na categoria "Outros" os furtos, roubos e assaltos a transeunte idoso, com uma média de 9,6%. Não é nada, é uma pista. O geriatra do Hospital das Clínicas da USP e do Centro de Desenvolvimento para Promoção do Envelhecimento Saudável, Marcel Hiratsuka, aponta algo evidente: os idosos são mais vulneráveis à violência porque aparentemente mais frágeis. Mas eles também temem a denúncia, já que o agressor pode morar na redondeza e voltar ao ataque. E pessoas de idade não são tão propensas a pegar as malas e mudar do lugar onde fincaram raiz há 30, 40 anos.

D. Angelina Soares Salleme, por exemplo, criou a facilidade, na perspectiva do delegado Mário Toniato. Aos 89 anos mora sozinha em São Manuel, interior de São Paulo, mas a menos de 100 metros da delegacia, o que criaria uma dificuldade, pelo menos para o crime. No entanto, na sexta, dia 20, a aposentada foi agredida com socos e pontapés, durante três horas, por duas mulheres que queriam dinheiro para a compra de drogas. Chegou a desmaiar, e foi quando a moça de 22 anos e a adolescente de 15 deixaram a casa levando pratos, copos e o que acharam na geladeira. D. Angelina só foi encontrada no dia seguinte por um vizinho que viu marcas de sangue na janela. Presas na segunda, as agressoras confessaram o delito. A agredida insiste em se manter ali, imaginando que a vida na casa dos filhos não seja, assim, um poço artesiano de tranquilidade. Talvez queira mesmo é levantar o muro. O mais alto que puder.

Um comentário:

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